RELATO DE UMA TARDE DE DOMINGO
por Camia Maria Nascimento
Você salvaria,
Se visse estirado no chão?
Acudiria um negro corpo
Deitado ao léu?
Eu salvaria?
Você olharia,
Estenderia a mão?
Ou cruzaria a avenida,
Para não ter que discutir consigo
Em silêncio
E por fim se autodeclarar inocente,
Afinal é para sua própria proteção ?
Um corpo negro no chão
No meio do caminho havia um negro
Havia um negro no meio do caminho
No sentido mais literal possível
Estava no chão
Só mais um pretinho
Sozinho
Ninguém sabe se está vivo ou não
Ninguém se atreve a cruzar seu caminho.
Mesmo estirado no chão,
Pois mesmo sem vida...
O perigo tem a cor da escuridão.
Preta.
Preto.
Possou reto,
Invisível
Sem compaixão.
Ninguém viu,
Nem se compadeceu.
Ninguém cuidou.
Esperou horas a fio
Vivo ou morto,
Ninguém se importava.
"Deve estar bêbado"
"Coisa boa é quem não estava fazendo"
"Deve estar drogado"
"Não é problema meu"
"Provavelmente merece"
"Procurou achou"
"Se pudesse na verdade era melhor que se acabasse todos esses de uma vez. "
"É tão desagradável
Ter que colocar em cheque
Meu senso de humanidade.
Esses corpos atrapalham,
Tornam feio a cidade"
- Podia ser eu.
Escuto a mim.
Eles tentaram,
Conseguiram.
Limpar a culpa
Decidindo qual vida é vida,
Quem merece compaixão.
No chão havia um corpo preto...
Sem camisa
De chinelo
De boné
E de cordão.
Que esperou horas a fio
Ser visto
Acudido
Resgatado...
Não sentimos dor,
E se sentimos, sabemos como lidar.
Não adoecemos
E se adoecemos, é melhor aceitar...
A morte certa
"Somos da raça humana!"
Disse o senhor de regata e sapatênis
Enquanto tirava dos olhos seu cabelo que escapou da orelha,
Tapando assim seu olhar azulado.
Seguro
E livre da necessidade de assegurar a sua existência.
Comprovar sua inocência.
E certo dos olhares que teria,
Da comoção que geraria.
Da preocupação que causaria
Em uma velhinha simpática
"Rapaz tão jovem, tão bonito"
Como é ser... humano?
Ninguém sabe que aquele homem tinha ido comprar o jornal.
Para saber se seu nome constava
Na lista de aprovados.
Sua filha esperava ansiosa
Pois o pai disse que traria picolé de uva.
Aos poucos ele foi se reerguendo,
Abriu os olhos.
Tudo muito claro.
Tudo ainda turvo.
"Há quanto tempo devo estar aqui?"
Cambaleando ergueu-se.
Aos poucos deu passos curtos
"Minha pressão deve ter baixado"
Eu o ouvi dizer enquanto ele levantou
Passo após passo
Esse neguinho
Seguiu seu caminho
E foi comprar o picolé de sua filha.
Grato por estar vivo.
"Que história eu preciso contar
Para minha humanidade provar?"
Fonte da imagem: acervo pessoal de Camia
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