BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: O DOADOR DE MEMÓRIAS


por Alexandre Xavier Lima


Imagine que você viva em uma sociedade perfeita, onde não exista desigualdade, nem conflitos. Jonas, personagem de O Doador de Memórias, de Lois Lowry, faz parte dessa realidade. Essa sociedade só é possível porque as individualidades dos cidadãos foram anuladas, assim como todas as emoções. Todas as decisões são tomadas pelos anciãos, que observam a população o tempo todo. Dessa forma, não só as crianças são designadas para unidades familiares (não-biológicas), como também os jovens recebem suas atribuições, de acordo com suas qualidades. Jonas, por dispor de todas as qualidades (inteligência, integridade, coragem e sabedoria) e ainda possuir a capacidade de ver além, recebe a designação de guardar todas as memórias da comunidade. Nenhum outro membro da comunidade tem memória do passado. Ela fica restrita a uma pessoa, o Recebedor, que serve à comunidade como conselheiro.

Seu local de treinamento é uma casa próxima à “beirada”, extremo da área habitável – o espaço remanescente é plano. Em nenhum momento, fala-se em biblioteca, entretanto, a descrição de seu interior lembra muito a estrutura de outras bibliotecas ficcionais. As estantes, do chão ao teto, decoram todas as paredes: “Devia haver ali centenas, talvez milhares de livros, seus títulos gravados nas lombadas em letras brilhantes. Jonas não tirava os olhos deles. Não podia imaginar o que tantas páginas poderiam guardar.”

O lugar é ligeiramente diferente dos lugares que Jonas conheceu. “A diferença mais notável eram os livros.”, que eram proibidos aos cidadãos. Apenas os Recebedores tinham acesso. Ironicamente, o personagem estava tão envolvido na recepção da memória que não tinha tempo de abrir os livros. “Mas lia os títulos aqui e ali e sabia que continham todo o conhecimento de séculos. Um dia, os livros lhe pertenceriam.” (p. 69). Na narrativa, os livros são outro meio de receber as memórias da sociedade. Por isso, o Doador de memórias vai dizer que, quando o treinamento terminasse, Jonas poderia ler os livros; teria as lembranças. Teria acesso a tudo. (p. 96).

Enquanto na casa de treinamento do Recebedor havia muitos livros, capazes transmitir as memórias, nas unidades familiares, a leitura se restringia a “um dicionário e o grosso catálogo da comunidade contendo descrições de todos os escritórios, fábricas, construções e comitês. E o Livro de Regras, é claro. Os livros de sua casa eram os únicos que ele já tinha visto. Nunca soubera que existiam outros”.

Ao exercitar a nossa capacidade de ver além, num tempo em que o ministro da Economia ameaça retirar a isenção de impostos das editoras e promete distribuir livros aos mais pobres (https://economia.ig.com.br/2020-08-05/guedes-e-melhor-doar-livros-a-mais-pobres-do-que-isentar-editoras-de-tributos.html), não é de se estranhar que as escolhas de livros para os mais pobres fiquem cada vez mais restritas, tal qual a ficção: um dicionário, um livro técnico e um livro de regras. O leitor corre o risco de não ter a possibilidade de escolher sua leitura, sendo conduzido ao esquecimento e ter que se contentar com menos do que merece, a ponto de se espantar, como Jonas, ao perceber que existiam muitos livros, muitas memórias, de que já houve diversidade. 

Agora imagine-se em uma biblioteca, escolhendo com liberdade um título. Você pode muito bem optar por uma leitura que explore as coisas boas da vida, mas sabe que nesse mesmo lugar vai encontrar memórias sobre os problemas de nossa sociedade. A opção será sua. As memórias podem ser boas ou ruins, o importante é que revelam o que somos, o que nos tornamos, nos dão consciência de nossos atos e colocam em xeque a suposta harmonia que se constrói com a alienação.

Caro Recebedor-Doador, a diversidade de pensamentos dos livros nos permite sonhar e ver as cores de todas as coisas.


Fonte da imagem: <https://images.app.goo.gl/FDk45Kv17ZewhAg3A>.

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