BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: A BIBLIOTECA NACIONAL DE DESATINO DO NORTE



por Alexandre Xavier Lima

 

Uma biblioteca é um espaço vivo, ou pelo menos sugere uma organização dinâmica, prontamente ativa e promotora de interação. Assim é a Biblioteca Nacional de Desatino do Norte, lugar ficcional de Luna Clara e Apolo Onze, de Adriana Falcão. Nessa narrativa, acompanhamos, sob múltiplas perspectivas, encontros e reencontros de seus personagens. Encontro de Luna Clara com seu primeiro amor, Apolo Onze, e, reencontro de seus pais, separados, desde sua concepção.

Essa biblioteca surge como forma de compensar o destino do acervo oral de Erudito, avô de Luna Clara. Durante as suas andanças percebe que as histórias que recolhia na memória não estavam mais acessíveis:

"A memória está aqui na minha cabeça. As histórias é que não estão mais" [p. 63].

A passagem de acervo oral para escrito acompanha, no romance, a passagem da vida nômade à sedentária da família de Luna Clara, movimento muito comum em muitas sociedades que fixaram território e se apropriaram da escrita como forma de organização social.

Outro movimento recorrente é a necessidade de se preservar o patrimônio cultural. A maioria dos textos religiosos, senão todos, conheceu primeiramente uma tradição oral. Isso aconteceu com os salmos, por exemplo. Eram memorizados e transmitidos por gerações. Até que resolveram registrar por escrito a fim de proteger o texto da memória inconstante de seus fiéis em tempos de exílio na Babilônia, entre os séculos VII e VI a. C. O mesmo com os Vedas dos Hindus e uma parte do Alcorão, que foi ditado por Maomé e registrado por seus discípulos em diversos suportes.

O acervo oral de Erudito surgiu num tempo em que:

"vivia pelo mundo com suas três filhas, colecionando histórias. Valia tudo: mitos, novelas, lendas, fábulas, romances reais ou não, ou em prosa ou em verso, era indiferente. Já tinha colecionado até ali 8.451 histórias de amor, 7.198 de aventura, 27 de terror, 3.012 comédias e 1.890 tragédias. Contando com as 25.000 histórias que ele já sabia antes, sua coleção totalizava 45.578 histórias variadas”.

O acervo escrito se estabeleceu aos poucos, sendo o espaço físico da biblioteca consequência da coleção que foi se formando:

"Seu Erudito comprava livros, mais livros e colecionava novas histórias. Até que resolveu arranjar uma biblioteca para ter onde guardá-las".

E apesar de ser consequência do crescimento de sua nova coleção, Erudito tinha certeza de que as histórias ficavam mais seguras nos livros do que em nossa cabeça. Sua atividade consistia em adquirir livros velhos seja pela compra, seja por doação, restaurá-los (os livros adquiridos geralmente passam por um tratamento para evitar que de alguma forma contaminem os já disponíveis no acervo) e disponibilizá-los ao público. 

"Quanto mais as estantes ficavam cheias, mais tempo Seu Erudito passava na biblioteca."

Nessa biblioteca, os leitores podem encontrar Os três mosquiteiros, Sherlock Holmes, Alice no país das Maravilhas, Cirano de Bergerac, Corcunda de Notre Dame, Sítio do Pica Pau Amarelo, com destaque ao exemplar antiquíssimo de Romeu e Julieta, escrito em inglês arcaico.

Erudito, em sua Biblioteca, interagia com vários personagens das inúmeras histórias que colecionava:

"Os Três Mosqueteiros, por exemplo, fugiam da sua história para uma visita, muito frequentemente. Depois do almoço, Seu Erudito brincava de ‘o que é o que é’ com Sherlock Holmes. Tinha que admitir, porém, perdia sempre. Sem contar os muitos conselhos que dava a Romeu e Julieta”. - Experiência equivalente, na realidade, aos recursos de multimídia, envolvendo os leitores através do som e da imagem.

Por fim, vale comentar sobre o nome do bibliotecário, Erudito. Na Grécia antiga, correspondia indivíduo de vasto conhecimento, em todas as áreas, sobretudo, da literatura. Sinônimo de filólogo, era papel do erudito traduzir ou interpretar para as novas gerações os tesouros de sua cultura. Na narrativa, Erudito é a própria Biblioteca viva que preserva as histórias, mas também faz parte de novas histórias. Sua biblioteca nacional segue o mesmo princípio. Os personagens pulam dos livros e convivem com ele. Cabe a cada um de nós ocupar esse espaço de erudição e colocar à disposição do próximo a biblioteca que somos nós. Façamos com essa prática uma nova história.


 

Fonte da imagem: acervo pessoal de Alexandre.

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