BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: FAHRENHEIT 451
por Alexandre Lima
Ambientada num futuro não muito distante, em uma metrópole americana “com seu misto de progresso industrial e deterioração do tecido urbano”, a narrativa Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, traz uma peculiaridade: as casas são à prova de incêndio. Por conta disso, os bombeiros exercem outra função. Para evitar que os sonhos suscitados nas obras atrapalhem o equilíbrio e a aceitação da sociedade, os bombeiros ateiam fogo em livros. A única literatura permitida é a condensada em pequenos resumos. Talvez o mais grave dessa realidade é que tudo foi feito com o consentimento e aprovação da população.
Dentre os bombeiros, Guy Montag, à medida que vai descobrindo os acervos clandestinos, começa a questionar o seu ofício. Ora, os livros chegam às suas mãos de forma violenta: "Os livros bombardeavam seus ombros, braços...”; ora pousam obedientes como uma pomba, permitindo que Montag pudesse colher algumas linhas para seu repertório secreto. Um exemplo é a expressão “Houve um tempo”, usada por Montag, num diálogo com seu superior. Depois ele recorda que “no último fogo, num livro de contos de fadas, ele vira de relance uma única linha." (p. 35), justamente a que utilizou no diálogo com seu superior.
Para aqueles bombeiros, a imagem da biblioteca restringia-se a uma pilha de livros. "Os livros jaziam como grandes montes de peixes deixados a secar. Os homens dançavam, escorregavam e caíam sobre eles” (p. 38). Contudo, uma biblioteca é mais do que um depósito material, onde se colecionam volumes e mais volumes. Montag humaniza essa noção quando diz:
“E pensei nos livros. E pela primeira vez percebi que havia um homem por trás de cada um dos livros. Um homem teve de concebê-los. Um homem teve de gastar muito tempo para colocá-los no papel. E isso nunca havia me passado pela cabeça." (p. 48)
Para o personagem, uma pessoa pode levar a vida toda para colocar suas ideias em um livro. Se olharmos para o acervo de uma biblioteca, podemos pensar em tantas vidas que se dedicaram a compartilhar suas experiências e de certa maneira a perpetuar-se através de sua obra. Há quantos séculos Platão, Aristóteles, Homero e tantos outros grandes autores resistem? Portanto, a biblioteca é um encontro solidário de gerações.
Nessa narrativa, a forma das obras resistirem era através da clandestinidade, como fez Montag, escondendo os livros resgatados dos incêndios no sistema de ar-condicionado de sua casa. Sua biblioteca era composta por uns vinte livros, “uns pequenos, outros bem grandes, amarelos, vermelhos, verdes”. Nesse caso, não importa o tamanho da coleção, mas a sua representatividade. Um livro, em dadas circunstâncias, pode ser reconhecido como uma obra rara. Montag, inclusive, vangloria-se por ter talvez a última Bíblia. É interessante a menção à Bíblia, pois é o livro mais vendido e distribuído no mundo, com 5 bilhões de exemplares, de acordo com o Guinness Book. Isso mostra o estado de apagamento da memória escrita apresentada na ficção e a raridade que se tornou o seu exemplar.
Outro ponto que merece destaque refere-se à ameaça de perder seu acervo. Diante disso, Montag abre um livro no meio e começa a ler, assim como costumava fazer durante o trabalho:
“Calcula-se que onze mil pessoas, em diversas épocas, tenham preferido enfrentar a morte a se sujeitar a quebrar seus ovos na extremidade mais estreita” (p. 58)
Ele leu e não entendeu nada, pois nem sempre é possível estabelecer sentido com frases soltas e isoladas. A construção de sentido de uma obra depende de sua leitura integral e, ao mesmo tempo, da relação que se estabelece entre autor e leitor.
Ao ler esse trecho, imediatamente fui reportado à minha infância, à experiência que tive com um dos livros da biblioteca familiar: As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Nessa narrativa de aventura, havia uma disputa entre dois povos visitados por Gulliver, Lilliputianos e Blefuscusianos, motivada pela forma de quebrar os ovos. N’As Viagens de Gulliver, isso é uma denúncia sobre a futilidade presente na maioria dos conflitos entre os seres humanos. Por isso, é importante ler. Não podemos abandonar o diálogo entre as gerações estabelecidas nos livros e preservadas nas bibliotecas. Por fim, fica o alerta de Guy Montag: "Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas." (p. 61).
Fonte da imagem: <https://www.flickr.com/photos/pallih/42752184>.
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