AS BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS por Alexandre Xavier Lima

AS BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS


por Alexandre Xavier Lima


Nas últimas semanas, apresentamos duas bibliotecas na ficção que, em comum, serviram de palco para misteriosos crimes. Nesta semana, retomamos o tema, mas dessa vez não mais pelo ponto de vista do investigador. Iremos conhecer a biblioteca a partir do olhar da “criminosa” – entre aspas porque qualquer leitor se sente engajado no sucesso de Liesel Mimenger, personagem de “A menina que roubava livros”, de Markus Zusak. Liesel é uma pobre menina na Alemanha nazista que vive inúmeras aventuras pela própria sobrevivência, inclusive, a aventura de se tornar uma leitora.
Qualquer um com certeza vai perdoar a personagem, além de reconhecer que nenhum crime foi mais cruel do que o genocídio. Considerando também as recorrentes fogueiras feitas de livros, realizadas em praça pública pelos nazistas, o ato de roubar livros era uma forma de resistência em defesa do conhecimento. A pilha de livros é a primeira imagem que se constrói sobre conjunto de livros:
“Usaram-se carroças para transportar tudo. A tralha foi jogada no meio da praça central e encharcada de um líquido doce. Os livros, papéis e outros materiais escorregavam ou despencavam, mas eram atirados de novo na pilha. De uma distância maior, aquilo parecia uma coisa vulcânica. Ou algo grotesco e estranho que, de algum modo, tivesse sido milagrosamente descarregado no meio da cidade e precisasse ser destruído com um atiçador, e rápido” (p. 98).
A tralha, a pilha, o vulcão, algo grotesco – essas são formas de marcar o apagamento do que os livros formaram um dia – uma biblioteca. A cena de destruição também é possibilidade para a menina que roubava livros adquirir mais um livro. Poderíamos acompanhar a personagem nesse perigoso jogo de construção de seu acervo pessoal, desde o seu primeiro livro, O MANUAL DO COVEIRO, dialogando com as experiências não-ficcionais. Contudo, há uma outra experiência que merece destaque, a sensorial, feita a partir do espaço da biblioteca, que a mesma personagem vivenciou na casa do prefeito. Essa biblioteca tinha “Livros por toda parte! Cada parede era provida de estantes apinhadas, mas imaculadas. Mal se conseguia ver a tinta. Havia toda sorte de estilos e letras diferentes nas lombadas dos livros pretos, vermelhos, cinzentos, de toda cor”.
Para a personagem, essa experiência significava explorar o ambiente a partir de alguns sentidos, numa mistura de sensações visuais, táteis e auditivas, como se observa no trecho:
“a menina que roubava livros pôde tocar nas estantes, a poucos passinhos de distância. Correu o dorso da mão pela primeira prateleira, ouvindo o arrastar de suas unhas deslizar pela espinha dorsal de cada livro. Soava como um instrumento, ou como as notas de pés em correria. Ela usou as duas mãos. Passou-as correndo. Uma estante encostada em outra. E riu. Sua voz se espalhava, aguçada na garganta, e quando ela enfim parou e ficou postada no meio do cômodo, passou vários minutos olhando das estantes para os dedos, e de novo para as prateleiras.”
Nesse trecho, acompanhamos a experiência tátil, com o passar das mãos sobre os livros; a experiência auditiva, com o som do toque nos livros; a experiência visual com a contemplação dos livros nas estantes; e a experiência afetiva, com a alegria da descoberta:
“Era uma das coisas mais lindas que Liesel Mimenger já tinha visto”
“Deslumbrada, ela sorriu.”
“Parecia magia, parecia beleza, enquanto as linhas vivas de luz brilhavam de um lustre. Em vários momentos, Liesel quase puxou um título do lugar, mas não se atreveu a perturbá-los. Eram perfeitos demais” (p. 121)
A única coisa que Liesel pode fazer foi dirigir-se a esposa do prefeito e agradecer a oportunidade:
“Esqueci... quero dizer, eu só... queria... lhe agradecer” (p. 123).
Caro leitor ou cara leitora, eu te convido, a visitar, quando puder, uma biblioteca. Estando nesse ambiente, deixe-se envolver pelo desenho secular, formado pelos livros dispostos nas prateleiras. Se for possível, toque com cuidado em alguns livros, como se os cumprimentasse, depois ouça o som das páginas folheadas – elas conversam contigo. E, de espírito agradecido, saúde os homens e as mulheres que permitiram tudo isso. Que o teu crime seja simplesmente perturbar a perfeição desse local, fazendo dele um verdadeiro espaço de leitura.

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