BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: A CASA DA SABEDORIA




por Alexandre Xavier Lima


Há algum tempo, apresentamos uma biblioteca medieval cristã, palco de muitos acontecimentos do romance O Nome da Rosa. Neste texto, voltamos à baixa Idade Média, mas, dessa vez, acompanhamos Rob J., personagem de O Físico de Noah Gordon, um barbeiro-cirurgião que deixa a Europa cristã em busca de conhecimento médico no mundo islâmico. Rob deixa Leeds, norte da Inglaterra, para estudar medicina numa importante escola de Ispahan (ou isfahan), cidade localizada no Irã. Para esse empreendimento declara-se judeu e assume o nome de Jesse ben Benjamin. Pode parecer ironia, mas na Idade Média havia muito mais proximidade entre mulçumanos e judeus do que entre mulçumanos e cristãos.

Seguindo o modelo de Bagdá, a escola para onde se dirigiu Rob era formada por uma faculdade de medicina e uma biblioteca. A biblioteca era conhecida como Casa da Sabedoria. Daí, já é possível inferir sobre o papel que esse espaço exerce na formação dos estudantes. Não é, portanto, só o lugar de acúmulo de informação, mas de reflexão sobre o conhecimento. Por isso, o personagem aparece várias vezes nesse cenário, discutindo e aperfeiçoando suas práticas. A descrição que reproduzimos aqui é a do personagem principal, repleto de aflição quanto ao sucesso de seu empreendimento. Quando entra nesse local todos os temores desaparecem. Assim, realiza uma experiência sensorial: “Andou silenciosamente pela sala, tocando nos livros, lendo os nomes dos autores, poucos deles seus conhecidos [...] Rob jamais poderia ter imaginado tantos livros num só lugar”. Essa experiência sensorial alcança um significativo refinamento quando narra a apreciação do suporte que fazia sucesso no oriente: o papel, algo ainda incomum na Europa naquele momento. De acordo com a narrativa, o “Papel é feito de trapos velhos batidos e misturados com cola animal e depois prensado. É barato, até os estudantes podem comprar”. Já é possível perceber por que esse suporte se impôs em relação ao papiro e ao pergaminho. 

A biblioteca ficcional era dirigida por Yussuf-ul-Gamal. Esse personagem, além de atuar como bibliotecário, fazia cópias extras dos livros comprados em Bagdá. Assim, mais alunos teriam acesso às obras utilizadas pelos professores. A Casa de Sabedoria funcionava como fonte de pesquisa para os estudantes, que poderiam pegar emprestado um título, como o Corão ou um Tratado sobre o Olho, por exemplo. Era possível consultar alguns autores importantes para o mundo medieval, como Hipocrates, Dioscórides, Ardigeno, Rufas de Éfeso, o imortal Galeno, Oribásio, Filagrio, Alexandre de Trales, Paulo de Egina etc. Apesar da variedade de títulos, a biblioteca dependia da caridade da maior e mais rica instituição de Bagdá. “Na universidade de Bagdá há uma escola de tradutores, onde os livros são transcritos em papel em todas as línguas do Califado do Oriente. Bagdá tem uma universidade enorme com seiscentos mil livros na sua biblioteca, e mais de seis mil estudantes e professores famosos.”. Assim mesmo a escola de medicina de Ispahan era considerada especial, porque possuía um famoso médico, chamado Ibn Sina (personalidade que realmente existiu, segundo o autor do livro). Se por um lado dispunha de livros que não seriam encontrados em Bagdá, por outro, contava com atuação de um médico apontado como referência, o que nos leva a acreditar que o mais importante de um lugar, mais do que quantidade de títulos, são as pessoas que ali atuam e o que fazem a partir daqueles títulos.

Vale mencionar o momento em que Rob vai procurar na biblioteca a cura para a doença abdominal. A narrativa nos faz reconhecer que não sabemos tudo. O fato de sermos professor, médico ou advogado não nos faz portadores de todas as informações, mas podemos agir com sabedoria, buscando nos lugares certos, onde essas informações são compartilhadas. Noah Gordon, autor do livro, tem consciência disso, ao reconhecer que “este livro não poderia ter sido escrito sem a ajuda de muitas bibliotecas e de muitos indivíduos.”. Segue o comentário do autor o nome de inúmeras bibliotecas que serviram de fonte de pesquisa para o livro.

O processo de construção de conhecimento é longo, envolve várias gerações, mobiliza muitos recursos; no entanto, não está imune a possíveis políticas reacionárias. Ainda assim o legado deixado na formação de milhares de indivíduos vai muito além das paredes de um prédio, supera qualquer entrave ético-religioso e se impõe como memorial vivo do melhor do ser humano.


Fonte da imagem: <https://pxhere.com/pt/photo/553585>.

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