BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: ENOLA HOLMES



por Alexandre Xavier Lima


É natural que nossos olhos fiquem centrados nos personagens de uma boa história, mas quando fazemos o exercício de observar os detalhes, podemos nos surpreender com as mensagens periféricas. Chama-nos atenção a quantidade de vezes que coleções de livro decoram cenários de ambientes internos no filme “Enola Holmes” (2020). Dirigido por Harry Bradbeer e inspirado no romance “Os mistérios de Enola Holmes - o caso do Marquês desaparecido”, de Nancy Springer, o filme acompanha a irmã caçula de Sherlock Holmes, Enola Holmes, que, ao tentar descobrir o paradeiro de sua mãe (Eudória Holmes), desvenda uma trama para assassinar o jovem Visconde Tewkesbury, Marquês de Basilwether. Destinado ao público infanto-juvenil, a narrativa oferece boas doses de aventura, investigação, humor e ainda assim consegue abordar questões sobre a importância do voto e o papel da mulher na sociedade. Enola, sempre corajosa, forte e perspicaz simbolicamente representa a luta pela emancipação feminina na virada do século XIX para o XX.

As referências começam na casa da senhora Eudória Holmes. No mesmo lugar onde se realizavam reuniões secretas de um grupo de mulheres, a jovem Enola Holmes realizava seus estudos com ajuda da mãe. Foi inclusive a mãe quem a fez ler todos os títulos da Biblioteca de Ferndell Hall, como os de Locke (pai do liberalismo e defensor da tolerância religiosa), enciclopédias (a mais famosa delas foi escrita por figuras do iluminismo), Thackeray (autor de Feira das Vaidades) e os ensaios de Mary Wollstonecratf (autora feminista, mãe de Mary Shelley) e Shakespeare (sem comentários!). O ambiente tem uma grande mesa de madeira trabalhada ao centro, estantes de livros ao fundo e muitas pilhas de livros espalhadas por todo lado. O lugar é um pouco desorganizado, muitos livros fora da prateleira, mas também indica que é muito frequentado.

A multifuncionalidade do espaço também se faz sentir na sala onde Sherlock e Mycroft conversavam. Além da mesa de bilhar ao centro, está repleta de estantes com os livros bem organizados nas paredes, diferente da sala onde estudava Enola. Outro ambiente em que os irmãos conversavam é aparentemente um clube. Trata-se de uma sala de leitura de jornais, com estantes de madeira repletas de livros, poltronas e mesinhas, perfeitas para o copo de uísque de Sherlock Holmes. Esse espaço lembra algumas hemerotecas, não pelo seu aspecto aristocrático, mas por disponibilizar o espaço de leitura de periódicos e de servir de acervo para os jornais publicados, sobretudo, no país. A maior coleção de jornais no Brasil pertence à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Lá estão guardadas muitas páginas da vida cotidiana do brasileiro, narrada oficialmente desde 1808. Muitos jornais não chegaram até nós, em atividade, mas estão lá guardados como registro da formação do Brasil. Inclusive, é possível acessar tais registros através da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. 

Era comum publicações a pedido nos jornais oitocentistas. Dentre as publicações, mensagens cifradas nos anúncios, assim como fizeram as personagens. A prática dos jornais oitocentistas permitia a comunicação entre pessoas geralmente de forma discreta, (quase) perfeito para os casais apaixonados, por exemplo. Esses códigos às vezes não funcionavam, seja por dificuldade de decodificação, seja por identificação desses pequenos textos nos jornais. Lembro-me de ter visto alguns em que um dos interlocutores reclamava porque o outro não viu a mensagem em tempo de ir ao encontro marcado.

Vale lembrar que Sherlock também usava o jornal em seu trabalho. O famoso detetive usava as descrições e imagens para desvendar alguns crimes. A jovem Enola, no filme, usa o jornal para tentar contactar sua mãe. Dentre os títulos utilizados estão: The Pall Mall Gazette, Revista da mulher moderna e Jornal da Reforma da Moda. Já é possível observar que a diversidade de títulos acompanhava a diversidade de ideologias.

As referências às coleções continuam na casa de chá, onde Enola localiza uma conhecida de sua mãe. Ali também se observa uma coleção de livros em várias estantes e prateleiras. O cliente escolhia um livro e era servido com um delicioso chá. Quanto aos títulos, Sherlock identificou alguns livros subversivos para época, a favor dos direitos iguais para as mulheres. Até mesmo, na escola de aperfeiçoamento para jovens damas, na sala da diretora, há uma pequena coleção, entre troféus e quadros. Contudo, os livros são usados para colocar sobre a cabeça, nas aulas de postura. Curiosamente, não se observa uma coleção de livro na mansão do Marquês. Entretanto, o jovem Marquês de Basilwether guarda uma pequena coleção de livros em sua secreta casa da árvore, nos arredores de sua mansão.

Seria obsessão reconhecer essas referências? Confesso que as análises de Sherlock Holmes me fazem sentir menos estranho. Seriam coincidências a presença de tantas coleções nos cenários deste filme? É bem provável que não. Uma leitura possível é ver nesse recurso visual a relação entre a emancipação da personagem e o papel que os livros exercem em sua formação e nas suas escolhas. Afinal, o que mais procuramos nessas leituras senão a outra versão de nós mesmos?


Fonte da imagem: <https://pixabay.com/pt/photos/livros-antiquariat-t%C3%BCbingen-idade-4515917/>.

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