MATEM-ME POR RECITAR A VERDADE
por Hanna Mel
Queimem-nos nas fogueiras por sermos livres.
Por sermos nós.
Bruxas.
Vadias.
Mulheres da rua.
Mulheres da vida.
Loucas.
Mudam a nomenclatura, mas o medo é o mesmo.
Mulheres que voam.
Não nas vassouras, mas voam.
Nós somos as netas das bruxas que eles não conseguiram queimar.
Das negras que não conseguiram matar.
E quem diria que aquelas, as mulheres que foram acorrentadas pelos pés, impedidas de voar, dariam à luz a filhas com asas.
Prendam-nos por sermos intensas.
Cansam de se afogar em poças d'água e se assustam com oceanos.
Queimem-nos por termos almas de oceano.
E eu, já cansada de morrer tantas vezes.
Queimem-nos por termos aprendido a voar.
Matem-me por eu não ter medo de magoá-los: recitando a verdade, escrita na pele das minhas ancestrais, de corpos que nasceram para serem livres, e foram aprisionados.
Queimem-me de verdade, assim como já queimaram museus. Essa mania de queimar aquilo que exala história.
Queimem-me nas fogueiras, com medo da minha liberdade, matem de novo em nome de Deus, mas nunca me matarão na memória.
Queimem-me por recitar a verdade.
Desenho: Hanna Mel.
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