BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: AGATHA CHRISTIE por Alexandre Lima
BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: AGATHA CHRISTIE
por Alexandre Lima
A proposta desse texto é apresentar mais uma biblioteca na ficção, assim como foi feito com a biblioteca de “O nome da rosa” anteriormente. Em comum entre a biblioteca medieval de Umberto Eco e a biblioteca que serve ao tema desse texto é o fato de compor o cenário de um crime. Afinal, “Corpos estão sendo sempre encontrados nas bibliotecas, nos livros.” (p. 9). Essa é a fala do coronel Arthur Bantry, personagem de “Um Corpo na Biblioteca”, de Agatha Christie. No prefácio da obra, a autora considera que o corpo na biblioteca é um dos chavões da ficção policial. Também ela se serviu desse chavão fazendo alguma variação.
Para a narradora, “A biblioteca em questão deveria ser... bastante ortodoxa e convencional” (p. 5). Acrescenta que “O coronel e a sra. Bantry, antigos amigos íntimos da minha Miss Marple (investigadora do caso) tinham o tipo exato de biblioteca” (p. 5). Desses trechos já podemos identificar alguns traços da modernidade. Por um lado, uma mulher é colocada como protagonista, única pessoa capaz de recuperar da leitura desse ambiente os eventos que explicariam o corpo ali presente, por outro, um acervo particular indica uma prática moderna popularizada ao longo do século XX.
Hoje em dia aquelas estantes cheias de livros atrás da mesa são o cenário obrigatório de muitas “lives” a ponto de o ilustrador madrilhenho Eduardo Berazaluce propor, como paródia, a venda de painéis, simulando a biblioteca de fundo. No entanto, ter um livro antes da invenção da impressão por tipos móveis (no ocidente, desenvolvida por Gutemberg) era algo muito caro. Os recursos eram escassos, o processo envolvia técnicas de encadernamento e de adornamento extremamente sofisticados. Exigia ainda a competência de uma pessoa capaz de copiar, num mundo em que poucos tinham acesso a escrita. Uma biblioteca particular era praticamente impensável. O livro na maioria das vezes era uma peça decorativa.
Esse cenário mudou graças ao desenvolvimento tecnológico que permitiu a popularização dessas bibliotecas nos diversos lares pelo mundo. Há notícias de grandes acervos particulares, como a biblioteca de José Midlin, considerada o maior acervo particular brasileiro com seus 17 mil títulos. Esse acervo foi doado em 2005 à USP e hoje é conhecido como Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Ou ainda, como a coleção pessoal do professor Celso Cunha, hoje sob a guarda da Biblioteca José de Alencar (UFRJ). Essa coleção reúne livros sobre filologia, linguística e literatura. Quando foi doada, os biblioteconomistas da UFRJ foram até o local, fotografaram a disposição dos livros e da mobília, recolheram tudo com cuidado e a remontaram em um espaço especial da Biblioteca José de Alencar. Ao entrar nesse local, é como se estivesse voltando no tempo, em meados do século XX. A fidelidade à disposição original permite-nos recuperar a forma como o famoso gramático trabalhava e conduzia suas leituras. Por sinal, extremamente organizado. Diferentemente da biblioteca que Miss Marple encontrou: “era um ambiente que guardava as características de seus proprietários: ampla, gasta e desordenada. Tinha grandes poltronas já decadentes; cachimbos, livros e documentos cobriam uma mesa imensa” (p. 15).
Nem todas as bibliotecas particulares são incorporadas a um acervo público. Se não são preservadas na família, são, na melhor das hipóteses, vendidas aos sebos. Certa vez, encontrei, em uma banca de livros usados, diversos títulos sobre jornalismo. A forma como estavam dispostos e as anotações nas páginas iniciais me fizeram supor que pertenciam a um mesmo colecionador. Essa pessoa provavelmente levou anos juntando livros, num verdadeiro trabalho de coleta e organização, fazendo parte de sua história de estudos. A trajetória daquela biblioteca estava ao mesmo tempo a caminho da dispersão e da reincorporação em outras bibliotecas particulares.
Reincorporo a biblioteca particular da minha infância na memória: era um acervo formado por enciclopédias e coleções da literatura em língua portuguesa. Meus pais não tinham muito tempo para a leitura. Os livros na estante da sala eram decorativos para eles e sugestivos para aquele corpo estranho, curioso e muito vivo na “biblioteca”. Foi assim que conheci Eça de Queiroz, Machado de Assis e o significado de “conhecimento”.
Num futuro próximo, essas bibliotecas ocuparão outros espaços, como as nuvens virtuais, onde armazenamos arquivos digitais. É bem provável que os crimes nas bibliotecas envolvam os direitos autorais. Será preciso uma pessoa muito habilidosa, como Miss Marple, para investigar nos algoritmos os suspeitos caminhos da humanidade.
Fonte da imagem: acervo pessoal.
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