GELADO OU SORVETE
GELADO OU SORVETE
por Alexandre Lima
“O tio Rui é simpático e tem sempre bué de pressa.
Às vezes nos dá dinheiro para irmos comprar gelado e, podemos entrar todos no quintal da casa dele para ouvir algumas estórias que ele lê diretamente dos papéis amarelos onde ele escreve. Fala com uma voz constipada e algumas palavras mesmo são difíceis de entender” (p. 13).
Esse trecho pertence ao livro A Bicicleta que tinha bigodes de Ondjaki. Essa narrativa em primeira pessoa é ambientada na Angola dos anos de 1980. O narrador-personagem resolve participar de um concurso de redação, do qual o prêmio é uma bicicleta. Para vencer a competição, busca ajuda de seus colegas e do tio Rui, escritor que mora na vizinhança.
Da leitura do trecho, temos dois possíveis estranhamentos. O primeiro é o do personagem que não consegue entender algumas palavras do tio Rui. Isso é logo explicado na narrativa:
“Não vês como são os bigodes do tio Rui? [...] São assim tipo capim que já não se corta desde o último cacimbo (estação das chuvas na Angola). [...] Depois que alguns sons e algumas palavras ficam presas no bigode.” - o avantajado bigode do escritor criava obstáculos na sua expressão, o que não o impedia de dominar a linguagem escrita. Isso nos lembra que podemos nos comunicar através da escrita ou da fala.
O segundo estranhamento talvez seja do leitor diante de palavras como “bué” e “gelado”. Na Angola, significam “intensidade” e “sorvete”, respectivamente. Daí a pergunta do título: Gelado ou sorvete? A resposta: vai depender do contexto em que você for pedir aquela iguaria feita de suco de frutas ou de cremes líquidos de leite, chocolate e que se congela. Essa possibilidade é sinal de que a nossa língua é viva e varia, ou seja, uma frase pode ser realizada de formas distintas. A maneira clara de se observar esse dinamismo é a variação regional. De uma região para outra, podemos encontrar maneiras diferentes de utilizar a língua, a ponto de alguns falantes cogitarem a necessidade de um dicionário de gauchês ou mineirês, por exemplo. Na Angola os miúdos brincam com seu papagaio de papel. Quando criança, morei em uma cidade do interior do Mato Grosso do Sul. Lá os “guris” “toreavam” com suas “pandorgas”. No Rio de Janeiro, os “moleques cruzam as pipas”.
No entanto, “gelado” não cria uma fronteira entre Brasil e Angola. Há registros dessa palavra no nordeste brasileiro. Quando estive em Lisboa, também tomei um “gelado”. A imagem que acompanha este texto mostra que, embora tenha o mesmo logo da Kibon aqui do Brasil, lá em Portugal, a marca do gelado chama-se Olá (a empresa também tem consciência sobre variação).
Por sua vez, a palavra “bué” aproxima Angola e Portugal, mas por outro motivo. Nos dois países tem o significado indicado acima (quantidade, intensidade). O interessante é que nesses lugares também existe a palavra “muito”. Portanto, a frase poderia ser:
“O tio Rui é simpático e tem sempre muita pressa”
A palavra “bué” seria utilizada em contexto informal, inclusive, muito apropriada para a situação de comunicação estabelecida pelo personagem-narrador. Isso tudo nos mostra que a língua pode variar numa mesma região a depender da situação de comunicação. Pode variar entre gerações. Com certeza, há um boé de diferença entre os falares de tio Rui e do Narrador, um menino entre 8 e 10 anos, para além do bigode. Basta pensar nos textos antigos que necessitam de um estudioso (Paleógrafo) para tentar decodificá-lo. Se um dia encontrar num texto antigo a palavra “meditabundo”. Não se assuste. O autor está apenas dizendo que alguém está em estado profundo de meditação.
A língua continua variando: pode ser entre gêneros, entre profissões; pode estar associada à escolarização e ao contato com os textos escritos. Ela marca a identificação a um grupo, por isso uma variedade não pode ser considerada superior a outra. Pode ser mais adequada, a depender do contexto de comunicação. Portanto, quanto mais variedades o usuário da língua conhecer, melhor será o seu trânsito por entre os diversos grupos.
Para concluir, vale dizer que há mais semelhanças do que diferenças, como o uso do pronome “nos” antes do verbo “dá”, a preferência pelo pronome “dele” (amplamente difundido pela imprensa) no lugar de “seu” e o uso de “tipo” com o sentido de “como”.
Em Luanda, Corumbá, João Pessoa, Maceió, Bagé, Maputo, Madureira e Leblon, o que nos une é mais forte!
Como o sorvete/gelado em dias quentes, assim é a linguagem, essencial e de muitos sabores. Como se diz por aí: na diversidade a unidade.
por Alexandre Lima
“O tio Rui é simpático e tem sempre bué de pressa.
Às vezes nos dá dinheiro para irmos comprar gelado e, podemos entrar todos no quintal da casa dele para ouvir algumas estórias que ele lê diretamente dos papéis amarelos onde ele escreve. Fala com uma voz constipada e algumas palavras mesmo são difíceis de entender” (p. 13).
Esse trecho pertence ao livro A Bicicleta que tinha bigodes de Ondjaki. Essa narrativa em primeira pessoa é ambientada na Angola dos anos de 1980. O narrador-personagem resolve participar de um concurso de redação, do qual o prêmio é uma bicicleta. Para vencer a competição, busca ajuda de seus colegas e do tio Rui, escritor que mora na vizinhança.
Da leitura do trecho, temos dois possíveis estranhamentos. O primeiro é o do personagem que não consegue entender algumas palavras do tio Rui. Isso é logo explicado na narrativa:
“Não vês como são os bigodes do tio Rui? [...] São assim tipo capim que já não se corta desde o último cacimbo (estação das chuvas na Angola). [...] Depois que alguns sons e algumas palavras ficam presas no bigode.” - o avantajado bigode do escritor criava obstáculos na sua expressão, o que não o impedia de dominar a linguagem escrita. Isso nos lembra que podemos nos comunicar através da escrita ou da fala.
O segundo estranhamento talvez seja do leitor diante de palavras como “bué” e “gelado”. Na Angola, significam “intensidade” e “sorvete”, respectivamente. Daí a pergunta do título: Gelado ou sorvete? A resposta: vai depender do contexto em que você for pedir aquela iguaria feita de suco de frutas ou de cremes líquidos de leite, chocolate e que se congela. Essa possibilidade é sinal de que a nossa língua é viva e varia, ou seja, uma frase pode ser realizada de formas distintas. A maneira clara de se observar esse dinamismo é a variação regional. De uma região para outra, podemos encontrar maneiras diferentes de utilizar a língua, a ponto de alguns falantes cogitarem a necessidade de um dicionário de gauchês ou mineirês, por exemplo. Na Angola os miúdos brincam com seu papagaio de papel. Quando criança, morei em uma cidade do interior do Mato Grosso do Sul. Lá os “guris” “toreavam” com suas “pandorgas”. No Rio de Janeiro, os “moleques cruzam as pipas”.
No entanto, “gelado” não cria uma fronteira entre Brasil e Angola. Há registros dessa palavra no nordeste brasileiro. Quando estive em Lisboa, também tomei um “gelado”. A imagem que acompanha este texto mostra que, embora tenha o mesmo logo da Kibon aqui do Brasil, lá em Portugal, a marca do gelado chama-se Olá (a empresa também tem consciência sobre variação).
Por sua vez, a palavra “bué” aproxima Angola e Portugal, mas por outro motivo. Nos dois países tem o significado indicado acima (quantidade, intensidade). O interessante é que nesses lugares também existe a palavra “muito”. Portanto, a frase poderia ser:
“O tio Rui é simpático e tem sempre muita pressa”
A palavra “bué” seria utilizada em contexto informal, inclusive, muito apropriada para a situação de comunicação estabelecida pelo personagem-narrador. Isso tudo nos mostra que a língua pode variar numa mesma região a depender da situação de comunicação. Pode variar entre gerações. Com certeza, há um boé de diferença entre os falares de tio Rui e do Narrador, um menino entre 8 e 10 anos, para além do bigode. Basta pensar nos textos antigos que necessitam de um estudioso (Paleógrafo) para tentar decodificá-lo. Se um dia encontrar num texto antigo a palavra “meditabundo”. Não se assuste. O autor está apenas dizendo que alguém está em estado profundo de meditação.
A língua continua variando: pode ser entre gêneros, entre profissões; pode estar associada à escolarização e ao contato com os textos escritos. Ela marca a identificação a um grupo, por isso uma variedade não pode ser considerada superior a outra. Pode ser mais adequada, a depender do contexto de comunicação. Portanto, quanto mais variedades o usuário da língua conhecer, melhor será o seu trânsito por entre os diversos grupos.
Para concluir, vale dizer que há mais semelhanças do que diferenças, como o uso do pronome “nos” antes do verbo “dá”, a preferência pelo pronome “dele” (amplamente difundido pela imprensa) no lugar de “seu” e o uso de “tipo” com o sentido de “como”.
Em Luanda, Corumbá, João Pessoa, Maceió, Bagé, Maputo, Madureira e Leblon, o que nos une é mais forte!
Como o sorvete/gelado em dias quentes, assim é a linguagem, essencial e de muitos sabores. Como se diz por aí: na diversidade a unidade.
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