BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: A biblioteca de Bouville (A Náusea de Sartre)



por Alexandre Xavier Lima

 

Nem sempre pensamos sobre as pequenas metamorfoses que ocorrem diariamente. Quando reparamos já se realizou uma revolução em nosso entorno. Essa reflexão é apresentada no romance filosófico A Náusea (1938) de Jean-Paul Sartre. Escrito em forma de diário, o romance apresenta a inquietação do narrador-personagem Antoine Roquentin. O que justifica o título é a ausência de respostas para as suas indagações que criam uma angústia nauseante, apenas amenizada com o seu trabalho desenvolvido na biblioteca. Frente ao contexto entre guerras, procura abandonar os valores universais e propor o encontro com nossa existência singular. Resgatamos essa singularidade através de sua experiência em acervo.

Por essência qualquer biblioteca seria um espaço propício para pesquisa. No entanto, para o narrador, a existência precede a essência. Isso significa que cada acervo tem a sua particularidade. Apesar de poder trabalhar em Paris ou em Marselha, opta pela Biblioteca Municipal de Bouville. Ali encontra maior parte dos documentos que dizem respeito às longas estadas, em França, do Marquês Rollebon, seu objeto de estudo.

A escolha por um tema como esse passa pela convivência com o assunto, pelos documentos e, acima de tudo, pela capacidade de sedução que as fontes revelam. Isso aconteceu com o narrador ao descobrir escritos sobre Rollebon. Deve-se reconhecer que só foi possível resignificar a existência do Marquês porque alguém conservou seus escritos. Um descendente deixou a coleção de documentos privados, como cartas, diário e papéis de todas as espécies. O grande desafio dos historiadores hoje em dia é recuperar a história por personagens da esfera privada. Portanto, todos nós somos potenciais guardiões de acervos à medida que conservamos documentos de nossos antepassados.

A ação de Roquentin na biblioteca é verticalizada. Suas buscas vão se concentrar no seu tema, mas com liberdade de expandir seu conhecimento em sintonia com sua curiosidade. Opõe-se a esse método o personagem reconhecido com Autodidata, que 7 anos antes entrou na biblioteca decidido, dizendo:«Agora nós, Ciência humana.» e passou a ler todos os livros, desde a primeira prateleira em direção à última, em ordem alfabética.

Alerta o narrador que o Autodidata acumulava conhecimentos sem qualquer relação. "As leituras do Autodidacta desconcertam-me sempre" - diz o narrador. O Autodidata já ia na letra L, com títulos como Lambert, Langlois, Larbalétrier, Lastex, Lavergne. "Atrás dele, adiante dele, há um universo. E aproxima-se o dia em que dirá para consigo, fechando o último volume da última prateleira da extrema esquerda: « E agora?»"

Mesmo tecendo duras críticas ao Autodidata, Roquentin reconhece que uma pessoa é sempre mais do que podemos compreender, ao descobrir que o Autodidata tinha sido prisioneiro de guerra. Estendemos a reflexão à pesquisa para reconhecer que um tema é sempre mais do que o olhar científico é capaz de captar, por isso a importância de uma abordagem multidisciplinar sobre a realidade.

Na biblioteca, o narrador ainda reconhece a singularidade de outros personagens, como o velho que lia romances cômicos e se entregava às gargalhadas, o funcionário que patrulhava o interesse dos estudantes - obras de Gide, de Diderot, de Baudelaire ligavam o sinal de alerta- e a moça envolvida no trabalho de licenciatura, todos apresentados sem cair na simples descrição de tipos, sem menosprezar as pequenas coisas: 

"para o acontecimento mais banal se tornar uma aventura, é preciso, e é bastante, que nos coloquemos a contá-lo... um homem é sempre um narrador de histórias: vive cercado das suas histórias e das de outrem, vê tudo quanto lhe sucede através delas; e procura viver a sua vida como se estivesse a contá-la."

Cabe dizer que a biblioteca é lugar de pesquisa, consequentemente, é espaço de reflexão. Por essa ótica, nós a abordamos como um evento único, por isso mesmo guarda um pouco de poesia, nas janelas cintilantes, nas longas filas de livros, nas encadernações a carneira, no cheiro das páginas, enfim, na luz poente do sol que matiza nossa experiência, tão singular como as pequenas mudanças que ocorrem o tempo todo em nossa vida.

 

Fonte da imagem: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bouville_-_2014-09-28_-_IMG_6831.jpg>.

Comentários

  1. Em uma boa biblioteca, você sente, de alguma forma misteriosa, que você está absorvendo, através da pele, a sabedoria contida em todos aqueles livros, mesmo sem abrí-los. Por isso é um lugar tão maravilhoso.

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