BIBLIOTECAS NA FICÇÃO: EU, PRETINHA?
por Alexandre Xavier Lima
A ficção pode nos fazer pensar nas leituras que marcaram nossa infância. A obra “Eu, Pretinha?”, de Júlio Emílio Braz, é um bom exemplo dessa experiência. O livro conta a história de uma menina negra chamada Vânia que precisa conquistar seu espaço e lutar contra o preconceito na escola, ironicamente chamada de Harmonia. Um ingrediente especial é a narradora-personagem que pouco a pouco supera as próprias atitudes preconceituosas e se descobre como negra. À medida que se aceita, abre-se para a amizade, passando a conhecer as muitas Vânias, que a protagonista aprendeu a ser. Uma dessas Vânias é a colecionadora de livros. É esse acervo pessoal que nos leva ao seu quarto:
"No quarto dela não tem lugar pra mais nada a não ser livros. Livros. Livros. Livros."
Nesse caso, não se trata de um escritório ou sala reservada para os livros. O próprio quarto pode assumir esse propósito de guarda e de estudo, num mundo em que os espaços são cada vez mais caros e cada canto da casa precisa ser multifuncional. E mais, reconhecendo as limitações financeiras da família da personagem, é uma virtude ter tantos livros. A própria Vânia explica, dizendo que seu pai vê nesses livros um investimento na formação de sua filha. Isso toca-me profundamente, pois meu pai, na minha infância, mesmo sem ter o “hábito” de leitura, comprava livros, enciclopédias e gibis, para que seus filhos pudessem ter uma boa formação. Há poucos dias ouvi uma colega dizer que os pais compravam livros a prestação, para garantir que a filha tivesse oportunidade de estudar.
Nesse acervo, há livros que a personagem nunca leu. Talvez nunca leia, mas estão ali disponíveis para sua formação. Existem livros, como dicionários, enciclopédias e gramáticas, que são de consulta. Outros, de fato, dependem da curiosidade de Vânia ou da indicação de uma amiga. Novamente, na minha infância, minha irmã mais velha costumava comentar sobre os livros que lia na escola. Despertada a curiosidade, lia os livros também. Assim, basta superar as primeiras páginas para sentir-se envolvido, ou seja, basta superar o preconceito que fazemos sobre ele e descobrimos um universo incrível.
Deve-se considerar as preferências. Vânia, por exemplo, gosta de "ler os gibis da Mônica e do Tio Patinhas". Mais uma vez sou transportado para minha infância: penso em quantas vezes desejei a moeda número 1 do Tio Patinhas, ou quando torci para que o Mickey conseguisse capturar os irmãos Metralhas, ou ainda dei risadas, sozinho, com as molecagens do Cebolinha e do Cascão - hoje em dia já se reconhece o valor estético dessa linguagem e sua importância para a formação dos futuros leitores.
O compartilhamento de livros é um outro ponto importante para a difusão de obras. Na narrativa, a personagem empresta alguns livros que se relacionam com sua própria história. Desses livros destacam-se “A cor da ternura”, livro de Geni Oliveira em que conta a própria história, a história de uma menina negra e pobre em um país onde ainda existe racismo. A personagem procura superar com ternura os desafios da vida. A narrativa “A história de uma folha” também é outra leitura indicada por Vânia. Nessa fábula, as personagens são folhas em pleno outono. Por essa imagem, Leo Buscaglia fala sobre amizade, diversidade, vida e morte. Vânia ainda empresta “As Viagens de Gulliver”. Nessa tradicional narrativa de aventura, acompanhamos o aventureiro Gulliver nas suas descobertas peculiares, decorrentes de suas viagens marítimas. Em quase todo lugar visitado pelo personagem, precisou conviver com o preconceito, pelo fato de ser diferente daqueles capazes de impor sua cultura. Dessa forma, o resultado do compartilhamento é a oportunidade de também receber outros livros, ampliando assim a possibilidade de leitura.
Para você que também possui em seu quarto um pequeno acervo de livros que esperam ser lidos, recupero aqui um trecho da obra de Júlio Braz. A frase está relacionada à luta no Colégio, mas, caberia aqui associá-la também ao engajamento da leitura como estratégia de transformação:
"A gente é que vai fazer ficar diferente".
Somos nós, à medida que nos entregamos à leitura, que transformamos aquele amontoado de linhas escritas em uma experiência diferente, envolvente, inesquecível, como nossa infância.
Fonte da imagem: acervo pessoal de Alexandre Lima
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