A NOVELA DAS OITO, de Gabriel Belchior


A NOVELA DAS OITO

por

Gabriel Belchior



Sabe qual é o problema? Aliás, não só aqui, mas em tudo? É não saber por onde começar. Essa inibição inicial gasta mais que metade do tempo totalizado, já que depois que se começa a escrever o texto, isso no meu caso, você cheira espiritualmente um pouco de cocaína do Nosso Lar e escreve que nem a falecida escrava da Globo, Janete Clair.

Aí está um bom início… Janete Clair! A Nossa Senhora das Oito foi misericordiosa na minha família. Reinava diariamente na casa dos Belchior, a tal ponto que a facção feminina do clã, com uma frustração perpétua, a usava como válvula de escape para os problemas conjugais.

Maria Amélia era sua maior fã. Ligava a televisão na hora da novela e fazia questão de dizer: “Está na hora do meu sonho começar”. Coitada, todo mundo percebia a fossa em que vivia por conta da alegria com aquele entretenimento barato (sem ofensas, Janete!). As irmãs sentiam pena e voltavam para suas casas e para aquela vida conjugal tão peculiar. Quando Maria falava que não era a única que sofria, as outras logo advertiam: “Pelo menos lá em casa toda noite tem!”, “Meu marido é macho, fez comigo quatro filhos!”. Essa última era a que mais doía nela. Engravidou somente duas vezes, sendo que só um sobreviveu. Culpou Deus por isso durante toda sua vida. Coitada, não conseguiu perceber que isso foi um presente do divino na vida das almas que poderiam ter nascido naquela familiazinha. Ninguém merecia ter Oswaldo Pereira, seu marido, como pai.

O auge da vida de Maria Amélia, segundo a mesma, foi quando percebeu que toda aquela enrolação em que vivia poderia se tornar uma novela. Não esperou nem mais um segundo: escreveu uma carta para Janete Clair, relatando toda aquela tragédia suburbana. Contudo, fez questão de pôr um post scriptum em letras garrafais: “ Se a novela for ao ar, quero a Regina Duarte no meu papel e o Francisco Cuoco como o meu marido. E não se esqueça de mudar o nome das pessoas, não quero problemas aqui em Niterói!” Lambeu o selo e foi no correio do bairro. Ficou dias esperando a resposta e inesperadamente ela veio. A decepção foi forte. Janete primeiro disse que a novela era inviável, já que Francisco Cuoco não interpretava vilões, como Oswaldo. Regina Duarte também era um empecilho, queria mudar o estilo das personagens, saindo da namoradinha do Brasil para mulheres emancipadas, prafrentex. Contudo, a escritora deu uma dica preciosa a Maria: falou que a lei do Divórcio tinha sido recém aprovada no Senado. A esposa do alcoólatra se revoltou. Guardou a carta no fundo de uma gaveta quase esquecida e iludiu as amigas e as irmãs, que também esperavam ansiosamente pela resposta, alegando que a carta provavelmente nem deveria ter chegado nas mãos da autora. Por fim, se negou a assistir a novela das oito, porém o hiato só durou até a semana em que O Astro pegou fogo: Salomão Hayalla fora assassinado e ela não desgrudou mais os olhos da televisão. Nem Janete, a produtora de seus sonhos, conseguiu despertá-la.

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